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Tchá Maria de Poconé ou redes sensitivas pantaneiras

Nas antigas festas de Santos do Paiaguás, convivia-se com personagens distintos de cada fazenda, marcou-me um desses personagens, que de vez em quando me revisita, Dona Maria dos Santos, a Maria Papuda, portadora do bócio então comum na região, arranchada com seus filhos na Fazenda São Camilo, do também poconeano Nézinho.

Chegavam de trator, e Tchá Maria vinha instalada num banco, com um séquito de afilhadas, netas e sobrinhas, mas para muito longe de seu notório problema físico, os faróis de seus olhos azuis acizentados, eram como imãs atraindo imediata contemplação…

Magnéticos, penetrantes imediatamente o sub consciente nos induzia a prestar imediata vassalagem a alguma heróica rainha ou deusa Viking, que achara o Valhala, lá nas velhas margens do Bento Gomes.

Nos tempos que um radinho era luxo, o Pantanal dependia da sensibilidade desses seres extraordinários, que se antecipavam e previam com exatidão o que viria a acontecer naqueles então isolados mundos.

Excepcional parteira, com habilidades obstétricas de resolver os mais complicados partos, amanhecia ou anoitecia preparando a mala, pois sabia com exatidão que logo viria um futuro pai, puxando um animal manso, a buscá-la para ir exercer seu dom de ofício, algumas léguas adiante…

Ou quando determinava faxina e arrumação, pois sua intuição lhe comunicara que o idolatrado patrão Nézinho chegaria nesse dia, passados os anos, filhos criados, eis que chegara a hora de abandonar os campos do Paiaguás e retornar à Poconé de sua meninice, edulcorada em suas memórias.

Embalados, a velha roca e o fuso onde tecia o algodão que cuidava nos cantos do quintal, um último passeio ao cerrado, abastecendo-se com raízes e folhas das prateleiras da gratuita farmácia provedora de infinitos remédios para qualquer mal, uma última dança onde somente seus pequeninos pés pareciam flutuar sobre o terreiro, relembrou canções da mocidade e antigos hinos religiosos, finalizando tudo com sua cristalina risada.

Arrumou para a viagem, com zeloso carinho a coleção de panos que hora eram mantos sobre os ombros, espantavam mosquitos, velavam-lhe a face ao sol, e enrolados à guisa de coroa sobre a cabeça, onde conseguia equilíbrar e caminhar, com muita graça, latas de água, cestas de frutas e até mesmo feixes de lenha…

A aposentadoria tramitou rapidamente, com a liquidação do rebanho próprio de bovinos e equinos que criava em conjunto com o patrão, e ei-la instalada em Poconé com duas casas alugadas, uma outra para sua moradoria, além de vistosa poupança depositada.

Rapidamente espalhou-se a boa nova de sua volta, atraindo todos os descendentes da família e dos velhos amigos, que compartilhavam de sua sabedoria, e porque não? Desfrutavam dos proventos que acumulara em sua produtiva e aventurosa vida nos confins do Pantanal.

Quando descobriram que ela exercia a Caridade, socorrendo secretamente alguns dos mais necessitados, a pressão tornou-se intolerável e permanente, mas esbarravam sempre em sua férrea crença.

Com subterfúgios, conseguiram marcar um evento em sua casa, imaginavam que ela fosse portadora das mesmas características urbanas, de falsa diplomacia e hipocrisia, e uma vez assumido um compromisso público, não teria como retroceder, e as muralhas daquela casa e as psicológicas de sua castelã, seriam definitivamente removidas.

Desenvolveu-se a estratégia como previsto nos manuais, após cânticos e orações iniciaram-se os testemunhos e num crescendo foi realizada a arremetida final, quando o oficiante, Livro Sagrado em punho, exortou o testemunho dela, nossa Maria.

Levantou-se Maria de Poconé, Maria Papuda, Maria dos Santos na pia batismal e seu olhar fuzilou com toda a sua valentia pantaneira baseada nos antepassados africanos, seu destemor para enfrentar os obstáculos e sua clarividência e sensitividade diante daquelas frágeis manifestações humanas.

Num átimo, silenciaram todos, subjugados diante do poder exercido por aquele olhar atemporal e que penetrou e arrepiou todos os presentes…

E Maria falou, com sua voz frágil:
“-Moço, o que mesmo que o senhor é?”
“-Sou pastor, minha irmã!”

Lembrando-se dos coices e mordidas do garanhão mimoseano, que pastoreava seus animais nos largos do Pantanal, Maria falou, liquidando a questão definitivamente, o que lhe permitiu reencontrar a paz que ansiava para seus últimos dias nesta terra:

“Então moço, vai procurar éguas novas, que esta égua velha jamais vai enlotar no seu rebanho!”

Armando Arruda LacerdaPorto São Pedro

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