O fio

O fio.

Um traço marcante da personalidade do Pantaneiro ou Pantânida, é a adaptação e ressignificação com valoração de objetos descartados ou inúteis.

De importância transcendental em sua vida, ele como necessita para sobreviver desta mudança de significado das coisas, um chifre ou osso de animal, pedaços de metal ou embalagens plásticas.

Um fio de barbante jogado ou um tento de couro descartado, torna-se, trançado e reforçado numa peça do arreio, a barbela de freio, com importante função de comando na montaria.

Evidente, que tudo se torna importante na solitária vida do morador dos sertões do Pantanal, e mesmo uma breve visita de alguém, todas as conversas são posteriormente revistas e busca-se significados ocultos ou premonições de tão importantes enviados.

Estava no Porto São Pedro quando um velho amigo me liga, que estaria chegando para uns dias de visita, trazendo um professor vindo do exterior…

Eis que os visitantes aportam após a tradicional correria das pequenas lanchas chamadas por isso de “voadeiras”.

Logo na chegada, o pantaneiro, fecha-se todo como um caramujo, só mantendo as antenas ligadas para observar as novidades trazidas por tão significativa visita…

Apresentado ao Professor Michele Taruffo, uma barreira aparentemente intransponível levantou-se, pois o meu amigo Celso Phiĺlbois conversava rapidamente num italiano para mim incompreensível.

Aguardando a refeição regeneradora, ouvindo as explicações entendi a missão do Professor Michele, desde a América do Norte e México, passando por todos os os países da América Central e a Costa do Pacífico na América do Sul, ele explorara todos os monumentos, templos e inscrições das civilizações pré colombianas das Américas.

Até pela Bolivia ele já tinha vindo em direção ao Pantanal, acompanhando a milenar Rota do Peabiru, que ligava os Andes a alguma coisa que se perdera quando do soerguimento tectônico dos Andes e o afundamento do Pantanal.

Queria ver o Chamado Letreiro da Gahyva, insculpido em pedra num dos canais de entrada daquele Mar interior que é a Baía de Gahyva, e ainda as enormes inscrições do Morro do Campo, gigantesco mural desenhado em toda a face Oriental daquele acidente geográfico, a erguer-se, solitário Landmark, no meio da Planície Pantaneira.

Compreendi naquele instante que tinha que estabelecer contato, chegara até mim, atravessando oceanos e continentes, o fio de Ariadne, aquele que me permitiria maior compreensão e conexão com o mundo em que vivia.

A voz pausada e o tom monocórdio, desenvolvido em muitas décadas de cátedra, parecia penetrar cérebro adentro, onde ia acendendo as luzes da compreensão…

Buscando absorver as lições do Mestre, quase que de forma automática a comunicação aconteceu misturando italiano, português e espanhol, com umas pitadas de inglês, onde ainda tinha, de japa, amáveis correções da pronúncia…

Não tivemos mais dificuldades dali por diante, acho que era uma comunicação meio aos saltos, deixara de ser linear embora nascida por um fio, se tornara algo sujeito a pulsos eletromagnéticos sem fio, talvez a la Guglielmo Marconi.

Conversamos muito sobre a situação do Pantanal, a devastação que o atingira, oriunda da exploração dos cerrados nos planaltos adjacentes, objeto de financiamentos a fundo perdido do Oriente.

A necessidade desses grãos, para resolver o problema de alimentação humana e animal, objetivando se tornarem aptos a dar o seu próprio salto rumo a virarem tigres econômicos.

O desmatamento, a devastação e o assoreamento foram os juros astronômicos que seguiremos pagando por gerações, pela ajuda “filantrópica” de tal desenvolvimento, para produção em alta escala, na fofa areia dos frágeis cerrados no Planalto.

Um privilégio o Professor rememorar. que o Oriente não tinha um código jurídico civil e comercial. e como Decano da Cadeira do Código Canônico Romano Cristão, o mais eminente dos Processualistas Italianos, foi um dos especialistas convocados, oriundos dos vários códigos jurídicos ocidentais.

Juntos com os resquícios místicos, elaborados por séculos de meditação dos monges orientais. chegaram a um Código Jurídico Conciliador sob o escrutínio de Câmaras de Conciliação de Justiça.

Tão feliz iniciativa como Código Jurídico no Oriente, e com tão eficientes resultados, que esse sopro de renovação legal estabeleceu-se em modernas Câmaras de Conciliação em praticamente todos os Códigos Ocidentais…

Na medida que começamos a desenvolver as expedições para apresentar o Pantanal ao convidado, foram cristalizando a forma distorcida que o Pantanal era apresentado no exterior, por organizações ditas ambientalistas.

Sempre a partir da inversão da secular cultura ecológica do Pantanal, evoluída no arquétipo do uso da natureza de forma sustentável, impondo uma narrativa fantasiosa de preservação, que adentrando pelo quadrante da filantropia, pretendia arrancar como ervas daninhas, quaisquer vestígios da milenar cultura que, surpresos, encontraram como realidade no Pantanal.

Manejando os instrumentos miliardários do Capital acumulado na monetização dos bens naturais, quando transformados em bens fungíveis, usando os instrumentos de espoliação e expropriação das mãos fracas por ignorarem seu valor, afinal a natureza sempre tem valor zero também para tais seguidores meta capitalistas do sócio ambientalismo.

Décadas de participação em Congressos Mundiais sobre Legislação, muitos exclusivos sobre Meio Ambiente, revelaram ao Professor Michele o paradoxo da atuação local no Pantanal dos mentores, gestores e apoiadores do ambientalismo, manipulando estrategicamente a tragédia da destruição da Natureza.

Através de investimentos vultuosos em empresas de propaganda sistemática, introduziram uma narrativa de apropriar-se como carência, escondendo a fartura que havia, e só apresentar essa fartura depois de sobrevalorizada justamente onde havia carência, culp da sua sistemática apropriação e transformação da Natureza em capital…

Uma cena marcou-nos bastante, ao apontarmos a voadeira na direção do Letreiro da Gahyva um barco abandonara rapidamente aquele local, algum lixo, cabeças secas de peixes fora de medida, latas e algumas bandeirolas de papel higiênico usado, mostrou-nos de imediato, o tipo de ” Turismo Ecológico de Contemplação” praticado naquele local. demarcado inclusive com uma Ministerial placa.

Sentimos a decepção de nosso visitante ao ver que a maior parte do mais importante e histórico monumento do Pantanal, jazia quebrado e afundado e na parte que sobrara, o movimento incensante de barcos de turismo em altíssima velocidade, no canal próximo, vinham acelerando a destruição das inscrições.

Inscrições lavradas em baixo relevo na pedra, resistiram por milhares e milhares de anos, mas não sobreviverão a pouco tempo de ignorância imposta pelo trabalho mecânico e servil de conduzir pessoas ávidas e incansaveis no afã de matar e levar um butim sanguinolento da fauna ictiologica do Pantanal.

No Morro do Campo, pedi licença a nosso cético visitante, e desci no rumo de colossal moita de taquaras amarelas, indicativas do início do sítio, que agitavam-se produzindo muitos sons, desci e resoluto caminhei até a moita, e em oração fervorosa, como na infância, pedi a Benção de Deus aos espíritos guardiões do local…

Talvez induzido pela adrenalina do momento, certo é que pareceu-me que o vento tornou-se suave brisa e os passarinhos foram nossa companhia na visita às inscrições do gigantesco Paredão do Morro do Campo.

Aceitei algumas bocaiuvas que me foram ofertadas, caindo propositalmente sobre meu chapéu ou aonde podia vê-las e algumas laranjas de um pé que se perdia, asselvajado, no dossel superior da mata.

Houvera em passado recente alguém, que para fotografar o mural em sua inteireza, roçara arbustos e cortara árvores junto ao Paredão, latas de cerveja e de conservas encontravam-se também comprovando passagem de certo tipo de bicho Homem por ali.

Remanescente de um caprichoso muro de arrimo, acompanhando a parte baixa do terreno, induz-nos a imaginar pelo seu tamanho, que por ali viveu muita gente, as taquaras, bocaiuveiras laranjas e alguns pés de manga espada baguás, finas e com a copa muito alta também comprovam moradia humana no local.

Alguns buracos de maior dimensão talvez dê notícias que por ali andaram inreressados nas abundantes ametistas e outros cristais semipreciosos do local.

Seduzidos pela beleza e detalhes dos muitos sóis estilizados, luas, círculos como gemas de ovo, serpentes, profusão de espirais de várias formas, desenhos como pentes de vários tamanhos, com os “dentes” de tamanhos variados, alguns extensos aparentando terem sido complementados em épocas distintas, lembrando-me ( sem concordância do Professor Michele) algum tipo de sistema numeral binário.

Ficamos examinando as obras por um bom par de horas, e mesmo o Professor Michele concordou que o local transmitia uma energia como se quisesse estabelecer algum tipo de interação conosco.

De retorno ao Porto São Pedro, com as imagens fixas na retina, o Professor Michele indagado se aquilo pertencia à Civilização Inca, nos assegurou que de acordo com seus conhecimentos e de outros especialistas, que a Civilização que nos legara aquelas obras de arte, similares a outras existentes na Costa do Oceano Pacífico, tinham uma anterioridade que excedia em pelo menos três mil anos a Civilização dos Incas.

Com a partida do Professor Michele, suas informações foram importante componente de nos apercebermos dos objetivos da confusão de interesses ditos ambientais por investidores, facilmente agora desmistificados como exploradores sequiosos e ávidos pela possibilidade de transformarem o Pantanal, numa Eldorado de commodities ambientais.

Chegamos a discutir com o Professor a possibilidade de que ele representasse todos os moradores tradicionais do Pantanal, apresentando, perante a Câmara de Conciliação de Tóquio, uma demanda do Pantanal.

Os débitos ambientais dos Tigres Asiáticos, podem ser rastreados até os contrafortes desmatados no Planalto adjacente ao Pantanal, com suas terras arenosas e frágeis, que fizeram os moradores do Pantanal pagar um alto preço pelo assoreamento e enchentes catastróficas.

A infelicidade do Pantanal, que simultaneamente ao desmatamento dos planaltos adjacentes, finalizou-se longo período de seca, coincidindo a partir de 1974 com enchentes que permaneceram durante décadas.

Os bovinos existentes no Pantanal foram saqueados ao longo dos anos através de compras a preço vil, no Planalto e na Região Amazonica recebia-se a terra desmatada, enleirada, calcareada e plantada por máquinas, combustivel e funcionários do Estado.

Os Bancos subsidiavam com incontáveis projetos de investimento as sementes das braquiarias africanas e depois as matrizes do Pantanal afogado nas enchentes.

Nos últimos tempos, antes que conseguissem se apossar do Pantanal permanentemente inundado pelo assoreamento dos rios, eis que um período de seca trouxe alívio e valorização das terras novamente utilizáveis.

Os milhares de hectares adquiridos a preço vil, e transformados em “Reservas ambientais” viraram um inferno de fogo diante do acúmulo de matéria vegetal, a tentativa de via propaganda criar uma forma de abertura de pastagens usadas em outros biomas, atribuindo o fogo aos fazendeiros tradicionais, para fugir da responsabilidade pelo combustivel que queimava insanamente, foi uma narrativa que os fatos desmentem repetidamente.

Há uma responsabilidade por todos os eventos de destruição ambiental no Pantanal, seja por enchente em consequência dos assoreamentos, seja pelo fogo por conta dos herbívoros retirados, tudo tendo sua origem nos progamas de desenvolvimento dos cerrados do Centro Oeste.

Com a maior satisfação os Governos aceitam as imposições dos investidores ambientais de hoje, os mesmos capitais que causaram a destruição, agora trazem a salvação, o Professor Michele Taruffo infelizmente nos deixou como órfãos para discutir este assunto, até que outra banca Internacional nos adote.

Como essa tentativa de conciliação parecia tão luminosa em seu pensamento, por conta da farta documentação nos tratados Internacionais, apta portanto a ser apresentadana Câmara de Conciliação de Tóquio, origem dos financiamentos da Jica Japan International Cooperation Agency e depois evidentemente nas Câmaras de Conciliação das sedes que emitem certificados ambientais para uma certa Round Table for Responsible Soy Association…

Foram poucos dias de convivência mas a presença do Mestre Michele Taruffo é nosso fio de Ariadne, que nos conduz aos mesmos desafios a cada vez que nos deparamos com um novo quadro de ignorância destrutiva no Pantanal.

Armando LacerdaPorto São Pedro